O MARQUÊS DE VALADA
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EXCERTOS
São bem conhecidos os factos ocorridos com José de Menezes e Távora Rappach da Silveira e Castro (1826‑1895), par do Reino de direito hereditário pelo Partido Regenerador, Governador Civil substituto de Lisboa e posteriormente Governador Civil do distrito de Braga por duas vezes (1877 e 1884), além de membro da Academia das Ciências britânica e do Instituto Arqueológico de Londres, oficial‑mor da Casa Real e pertencente ao círculo de amizades do rei D. Luís, comendador das Ordens de Cristo e de Santiago, Bailio da Ordem de São João de Jerusalém (Ordem de Malta), primeiro conde da Caparica e segundo marquês de Valada, título herdado do seu pai, concedido em 1813 pelo rei D. João VI e extintos ambos com o derrube do regime monárquico pela revolução republicana de 1910.
Elipticamente eufemísticos é o mínimo que se pode dizer dos termos, por outro lado elogiosos, em que se lhe refere a Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira: “Homem de grande erudição e notável parlamentar, figura de grande relevo não isenta de excentricidades, foi um orador, que marcou na Câmara dos Pares pela sua inteligência e saber” (AAVV, 1959: 708). O caso do marquês de Valada encontra‑se profusamente documentado no estudo pioneiro de Robert Howes (2006, 2005, 2002), e por Fernando Curopos (2016: 24‑32; 2021: 8‑11), que devidamente o contextualizou na emergência da homossexualidade na literatura e na cultura portuguesa no período que medeia entre 1875 e o início da Primeira Guerra Mundial. Material inédito e de difícil acesso permite‑nos não só confirmar as conclusões destes investigadores como complementá‑las.
Na noite de 2 de agosto de 1881, o Marquês de Valada, que contava então cinquenta e cinco anos de idade e se encontrava já no auge da sua carreira política (Howes, 2006: 264), é surpreendido em flagrante numa cena de engate com um soldado de infantaria numa pensão de passe situada da Travessa da Espera, no lisboeta e boémio Bairro Alto. O certo, porém, é que o escândalo tinha antecedentes, visto que a vida privada do marquês já anteriormente era pública e notória, e continuou a sê‑lo depois, na sociedade portuguesa (Howes, 2002: 27), então muito mais aristocrática que burguesa, cuja devassidão e hipocrisia laxista eram objeto privilegiado das denúncias morigeradoras dos setores políticos da oposição republicana e socialista.
(...)
Para a oposição republicana que dominava os media, o caso Valada constituiu o pretexto perfeito para ser explorado como ícone da decadência do regime monárquico e do respetivo sistema político‑partidário, nomeadamente o Partido Regenerador e o governo, na pessoa do primeiro‑ministro Fontes Pereira de Melo, bem como de outros ministros proeminentes como Barjona de Freitas.
(...)
O caso Valada não teria tido a relevância que teve sem a venenosa violência simbólica do caudal de caricaturas que dele fez Rafael Bordalo Pinheiro durante anos a fio e que se prolongaram até à morte do marquês (Howes, 2002: 26), “que será sua ‘bête noire’ permanente” (França, 2007: 83). Profusamente recheada de imagens familiares ao público da época, e que não seriam de molde a ferir‑lhe demasiado a sensibilidade, mas que atualmente associaríamos de imediato ao antissemitismo, à misoginia machista, ao racismo, ao colonialismo e, evidentemente, à homofobia e à lesbofobia, a caricatura de Rafael Bordalo Pinheiro prodigaliza‑nos do marquês de Valada uma verdadeira galeria de retratos de uma criatura lastimável, torpe, repulsiva e ridícula, de uma lubricidade de sátiro, completamente dominado pelos automatismos cegos dos seus irresistíveis impulsos sexuais (Howes, 2002: 36).
(...)
Valada é a homossexualidade incarnada, a homossexualidade é nele que corporeamente se materializa. Quando Bordalo Pinheiro diz que são (os políticos, por exemplo), ou somos, todos Valadas, empregando o nome daquilo com quem ninguém se quer parecer, fazendo uso de uma sinédoque, é com esta matéria‑prima da semântica social que está a trabalhar. Um longo caminho haverá a percorrer até que as forças conjugadas da mobilização política, da persecução de um estilo de vida ressubjetivador, da criação cultural, enfim, de formas de rexistência(s) invertam este rumo funesto de homossexualização do indivíduo e do grupo.
Elipticamente eufemísticos é o mínimo que se pode dizer dos termos, por outro lado elogiosos, em que se lhe refere a Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira: “Homem de grande erudição e notável parlamentar, figura de grande relevo não isenta de excentricidades, foi um orador, que marcou na Câmara dos Pares pela sua inteligência e saber” (AAVV, 1959: 708). O caso do marquês de Valada encontra‑se profusamente documentado no estudo pioneiro de Robert Howes (2006, 2005, 2002), e por Fernando Curopos (2016: 24‑32; 2021: 8‑11), que devidamente o contextualizou na emergência da homossexualidade na literatura e na cultura portuguesa no período que medeia entre 1875 e o início da Primeira Guerra Mundial. Material inédito e de difícil acesso permite‑nos não só confirmar as conclusões destes investigadores como complementá‑las.
Na noite de 2 de agosto de 1881, o Marquês de Valada, que contava então cinquenta e cinco anos de idade e se encontrava já no auge da sua carreira política (Howes, 2006: 264), é surpreendido em flagrante numa cena de engate com um soldado de infantaria numa pensão de passe situada da Travessa da Espera, no lisboeta e boémio Bairro Alto. O certo, porém, é que o escândalo tinha antecedentes, visto que a vida privada do marquês já anteriormente era pública e notória, e continuou a sê‑lo depois, na sociedade portuguesa (Howes, 2002: 27), então muito mais aristocrática que burguesa, cuja devassidão e hipocrisia laxista eram objeto privilegiado das denúncias morigeradoras dos setores políticos da oposição republicana e socialista.
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Para a oposição republicana que dominava os media, o caso Valada constituiu o pretexto perfeito para ser explorado como ícone da decadência do regime monárquico e do respetivo sistema político‑partidário, nomeadamente o Partido Regenerador e o governo, na pessoa do primeiro‑ministro Fontes Pereira de Melo, bem como de outros ministros proeminentes como Barjona de Freitas.
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O caso Valada não teria tido a relevância que teve sem a venenosa violência simbólica do caudal de caricaturas que dele fez Rafael Bordalo Pinheiro durante anos a fio e que se prolongaram até à morte do marquês (Howes, 2002: 26), “que será sua ‘bête noire’ permanente” (França, 2007: 83). Profusamente recheada de imagens familiares ao público da época, e que não seriam de molde a ferir‑lhe demasiado a sensibilidade, mas que atualmente associaríamos de imediato ao antissemitismo, à misoginia machista, ao racismo, ao colonialismo e, evidentemente, à homofobia e à lesbofobia, a caricatura de Rafael Bordalo Pinheiro prodigaliza‑nos do marquês de Valada uma verdadeira galeria de retratos de uma criatura lastimável, torpe, repulsiva e ridícula, de uma lubricidade de sátiro, completamente dominado pelos automatismos cegos dos seus irresistíveis impulsos sexuais (Howes, 2002: 36).
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Valada é a homossexualidade incarnada, a homossexualidade é nele que corporeamente se materializa. Quando Bordalo Pinheiro diz que são (os políticos, por exemplo), ou somos, todos Valadas, empregando o nome daquilo com quem ninguém se quer parecer, fazendo uso de uma sinédoque, é com esta matéria‑prima da semântica social que está a trabalhar. Um longo caminho haverá a percorrer até que as forças conjugadas da mobilização política, da persecução de um estilo de vida ressubjetivador, da criação cultural, enfim, de formas de rexistência(s) invertam este rumo funesto de homossexualização do indivíduo e do grupo.
ANTÓNIO FERNANDO CASCAISLicenciou-se em Filosofia, conclui um mestrado em Comunicação Social e outro em Bioética, e doutorou-se em Ciências da Comunicação. Professor, investigador, ativista, autor, foi pioneiro na introdução dos estudos queer em Portugal.
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FICHA TÉCNICAO MARQUÊS DE VALADA e a Tragicomédia da Inversão, de António Fernando Cascais.
Edição INDEX ebooks, 2025, revisão de João Máximo, Luís Chainho e Patrícia Relvas. 289 páginas. Copyright © 2025, António Fernando Cascais. Todos os direitos reservados. ISBN: 978-989-8575-61-6 (papel) ISBN: 978-1515125211 (impressão a pedido) |