Clássicos de Literatura Gay
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Os Mistérios do AsfondeloArsénio de Chatenay
Introdução de Fernando Curopos
Enquanto nos romances realistas as esposas infelizes (ou “aborrecidinhas”, como no caso da Luísa, de O Primo Basílio) caem em tentação e acabam por morrer física ou socialmente depois do adultério, único desfecho possível na lógica machista que sustenta a escrita, tal não é o caso em Os Mistérios do Asfondelo. Pelo contrário, a heroína que, no início, ostenta todas as qualidades morais de uma esposa que “respeita os laços que a ligam” ao marido, torna-se adúltera por vontade do próprio, além de incentivada a tal pelo pai, o primeiro, por pensar no “bem da família”, e o segundo, no futuro da filha, como deixam transparecer as suas “calculadas e pérfidas lamentações”.
O leitor contemporâneo poderá reconhecer em Os Mistérios do Asfondelo todos os temas do género e as técnicas do romance-folhetim: amores contrariados porque os amantes pertencem a duas famílias inimigas, os Coculins e os Mascarenhas, a condizer com as novelas sentimentais; sósias perfeitas – o que irá permitir uma maternidade de substituição entre as duas; peripécias mirabolantes; coincidências fatais; dissimulação (Ema não é uma enjeitada mas uma fidalga cuja identidade é enfim revelada no decorrer do enredo); sonhos premonitórios; amores à primeira vista; personagens caricaturais e grotescos, inclusive um padre devasso, a lembrar nas falas e atitudes quer a literatura satírica e libertina quer o romantismo gótico inglês. Os Mistérios do Asfondelo, tal como os outros romances de Arsénio de Chatenay, foi amplamente lido na sua época, mas logo votado a uma rasura crítica e à situação de “esgoto” pela imprensa contemporânea. Algum tempo depois da sua publicação, a janela que se abrira para a literatura licenciosa em Portugal, com a abolição do Tribunal do Santo Ofício, em 1821, fechar-se-ia durante a longa noite do Estado Novo. É por isso que nos parece urgente rever e reler a história da literatura erótica portuguesa, ou simplesmente escrevê-la, para tirar do olvido obras e autores que, como Chatenay, foram queer avant la lettre. (excerto da Introdução, por Fernando Curopos) |
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EXCERTO
CAPITULO VI.
(...) E o padre, quando assim lhe perguntava, tocava com a face o cabelo dela, sem que Violante se afastasse ou o repelisse. Afoitado por este assentimento tácito, beijou-a no pescoço. A jovem estremeceu, mas não lhe estranhou o feito. Já o padre, passando-lhe um braço em volta da cintura, ia iniciar mais vivas ousadias quando, nos campos da margem direita do rio, uma voz fresca e suave o interrompeu, cantando: «Um beijo do sol nas flores, Um ou dois à namorada, Mais vivas lhes torna as cores, A corola mais perfumada…» O padre, que já se acreditava no átrio do formoso templo, afastou-se; e Violante, erguendo-se de repelão, começou a olhar, bastante enleada, na direção em que irrompera o canto. Sossegou; a quadra não lhe podia ser alusiva, porque a cantora, que lobrigou depois de ter afastado as roupagens verdes do rio, achava-se longe, segando no meio de um campo de trevo, em flor então. O capelão, tanto que lhe apercebeu a serenidade, momentaneamente interrompida pela impertinente canção, entendeu estar no caso de repetir as ousadias; mas o momento da fascinação, ou da maré do diabo, tinha passado já. – O senhor padre António estará possesso! lhe disse Violante, repelindo-o. – Para aí caminho, se não se amerceia do triste, que se sente devorado pela ardentíssima febre do amor, e que… O padre foi interrompido na estopada amorosa pela voz, que de novo se fez ouvir, cantando. Dizia ela: «Amar um padre!… que horror! Eu antes quereria verter Todo o meu sangue, e morrer Mártir de um outro amor…» – Ouviu, senhor padre António? lhe perguntou Violante. – Os diabos levem a cantiga e a cantora, respondeu o padre, rangendo, furioso, os dentes quadrados, aptos para longo e aturado serviço. Em seguida, mas um pouco mais ao longe, na mesma direção, uma voz varonil, sonora e bem timbrada, respondeu à cantora: «Se sincero é teu desejo, Aqui me tens, branca rosa, Ansiando por um beijo Na tua boca formosa…» A rapariga, sorrindo maliciosa, olhou em todas as direções e, não tendo descoberto aquele que talvez presumia, respondeu, continuando a segar: «O beijo que assim me pede, Ocultando o corpo e o rosto, Não se dá, não se concede Com medo d’algum desgosto…» Violante, acreditando ter de assistir, sem ser notada, a algum curioso idílio de amor, de todo esqueceu o padre, para concentrar toda a sua atenção no ponto em que a camponesa, curvada, continuava a segar o trevo; e até já tinha conseguido observar que era ela branca, levemente rosada e de formas um pouco nutridas, mas formosamente talhadas; e que os seus olhos pretos, pestanudos, bem rasgados, dardejavam lumes sedutores. Continuava, pois, a olhar, quando viu sair, de trás de um silvado de vedação, um mancebo que, pé ante pé, se ia aproximando da gentil peã, que simulava não se dar por apercebida, até que logrou colhê-la e enlaçá-la pela cintura. – Ui! disse a surpreendida, desprendendo-se por um movimento brusco e rápido. Ai! continuou ela, simulando que só então reconhecera o mancebo, que é o senhor D. Vasco! – Ai! que é a minha linda Margarida! disse o mancebo, parodiando-a. – Que prazer sinto em vê-lo tão bem disposto, senhor D. Vasco! Quando chegou V. Ex.ª a S. Cosme? – Antes de ontem à noite; e sabendo hoje que te achavas aqui, vim, pretextando uma batida às codornizes. Não fiz bem, Margarida?… Desejava tanto ver-te… |
Violante, na distância em que se achava, não podia perceber o diálogo, mas não lhe escapou que o mancebo poderia ter entre vinte e dois e vinte e quatro anos, que era um pouco moreno, com olhos castanhos bem rasgados, de bigode e pera, que a navalha, mais tarde, tornaria bem fornida e preta, nariz bem feito; boca e sorriso apetitoso, e dentes bem-postos, esmaltados e bem tratados; que era alto, bem repartido e talhado, de movimentos fáceis e agradáveis; e, enfim, que a sua roupa de caça, elegantemente talhada, lhe assentava bem.
O diálogo continuava entre a peã e o fidalgo, cada vez mais animado, dando-se Violante a perros por lhe não ser permitido escutá-lo; mas, de repente, apertou com força os pequeninos punhos, os olhos lampejavam-lhe, estremecia, corou e descerrou os lábios. É que a rapariga, soltando frescas gargalhadas, fugia diante do mancebo, talvez por se recusar a alguma exigência; e Vasco, perseguindo-a, ia-lhe dizendo: «Nesta esperança, só te vou seguindo, Que ou tu não sofrerás o peso dela, Ou na virtude do teu gesto lindo, Lhe mudarás a triste e dura estrela: E se lhe mudar, não vás fugindo, Que amor te ferirá, gentil donzela; E tu me esperarás, se amor te fere; E se me esperas, não há mais que espere.» A carreira de Margarida era em direção ao ponto onde Violante os estava observando. Ela corria bem, mas embaraçada pelos braços do trevo e pelas saias rodadas, não conseguia desenvolver toda a sua força: ainda assim, o mancebo só a pode alcançar, colhendo-a pela cintura, a muito curta distância da margem. – Safa contigo, Margarida, que me ias fazendo cansar! Declaro-te que tens umas lindas pernas!… – Chama-lhe lindas! V. Ex.ª já mas viu?… – Não, com mágoa o confesso, Margarida, ainda não logrei tamanha dita, mas não serás tão ingrata que me negues por mais tempo tão grande felicidade. – Credo, senhor D. Vasco! Para que há de V. Ex.ª ser assim tão mau?… – Nem um beijo ao menos, Margarida?… – É que V. Ex.ª, dado o primeiro, quer o segundo, depois o terceiro, quatro, cinco, seis… e, depois, não continuarão as exigências?… – Como és avara da tua beleza, Margarida! – Saber poupar não é ser avara, meu senhor. – Pois bem, vá por um beijo só… – Um só?… E nada mais depois me exige, diga? – Não, minha filha. – De que idade casou V. Ex.ª com minha mãe?… O mancebo já a este tempo a conchegava ao peito, não tardando a colar os lábios nos lábios dela. A jovem apenas se defendia cerrando os olhos e curvando-se-lhe sobre os braços no sentido retrógrado, como para evitar-lhe o prolongado beijo; e tanto se dobrou em tal sentido que, em breve, perdeu o equilíbrio… O trevo, recebendo-lhes os corpos, abriu aos lados, para bem depressa, ao lado deles, retomar a primitiva posição. Dir-se-ia terem emergido num lago de águas verdes matizadas de flores vermelhas… Violante fixava o suspeito assinalado ponto com olhares ardentes, estremecendo sensualidades, mas a não ser a ligeira ondulação das flores do trevo e um ou outro gritinho sufocado, nada mais se apercebia. Parecia-lhe estar sonhando, quando despertou ouvindo a voz súplice do padre que, de joelhos, erguendo as mãos, dizia: – E então nós, nós, minha senhora?… Ai! amerceie-se de si e também de mim, que me sinto devorar uma febre que só os seus beijos poderão atenuar. – Se tem febre, padre, tem o rio perto, olhe… – Não derive, não dissimule, senhora, que está sendo desmentida pelo fogo que lhe incendeia os olhos e o rosto, pela respiração opressa e fervida, que lhe dilata as narinas, os lábios e os seios. Oh! não se me esquive, não se me negue às carícias e beijos, que serão silenciosos e mudos como os das vallisnerias que além sobrenadam, escutando-nos… E o padre, arrastando-se sobre os joelhos, tomou-lhe a fímbria do vestido, que levou aos lábios sôfregos. Violante, feramente indignada, sacudiu a roupa que ele segurava e beijava, dizendo: – Nojento!… Depois, voltou-lhe as costas e, em passo rápido, sacudido e nervoso, tomou o caminho da quint |