Clássicos de Literatura Gay
11 |
Saturnino, Porteiro dos Frades Bentos(autor anónimo)
No convento de São Bento, no Rio de Janeiro, frei Saturnino senta-se a escrever as suas memórias, depois de uma vida de incontinência e libertinagem, mas também de uma grande paixão, que acabará por ser a sua desgraça e o levará a regressar humildemente às suas origens.
Uma tradução adaptada de um original francês, que se constitui numa obra nova, ou hipertexto, Saturnino, porteiro dos frades bentos foi publicado em 1842 e foi um enorme sucesso comercial no campo da “literatura para homens”, tanto em Portugal como no Brasil. Segundo os autores da Introdução, “mesmo que limitado pela imaginação erótica [heterossexual]”, é uma obra “importante para a literatura LGBTQ brasileira e portuguesa pelo pioneirismo na narração de encontros e práticas eróticas que, supostamente, não deveriam aparecer na literatura. Por conta disso, acreditamos que homens que desejavam outros homens e mulheres que desejavam outras mulheres encontraram nesta obra algum lugar de reconhecimento e prazer, o que talvez ajude a explicar o seu sucesso.” |
Clique nos logos para encomendar.
EXCERTO DA INTRODUÇÃO
A Histoire de Dom B... portier des Chartreux foi publicada anonimamente em França, em janeiro de 1741, sendo a sua autoria atribuída ao advogado e escritor Jean-Charles Gervaise de Latouche. Um dos personagens do romance, o Padre Casimiro, foi inspirado no abade Desfontaines, que foi processado, preso e quase queimado na praça de Grève por sodomia. De acordo com os estudiosos da literatura erótica ocidental, a Historie de Dom B... portier des Chartreuxé uma das obras fulcrais da literatura libertina do século XVIII e uma das mais originais.
(...)
Saturnino, porteiro dos frades bentos, de 1842, que poderá ler a seguir com atualização e revisão ortográfica, é a primeira “versão” impressa em língua portuguesa de Histoire de Dom B... portier des Chartreux, sendo que, como outras do género, poderá ter circulado antes em versão manuscrita o que, aliás, poderia dilucidar o facto de o texto português apresentar alguns cortes e de certas cenas ficarem reduzidas ao miolo narrativo. Lembremos, à guisa de exemplo, que o outro grande sucesso da literatura libertina francesa coeva, Thérèse philosophe (Jean-Baptiste Boyer d’Argens, 1748), circulou em versão manuscrita durante muitos anos, antes de ser impressa, no primeiro quartel de Oitocentos. No entanto, entendemos que esta edição não é simplesmente uma tradução ou uma cópia do original francês; pelo contrário, as alterações, omissões e acréscimos efetuados a Histoire de Dom B…, portier des chartreux, assim como as novas gravuras produzidas para a edição, parecem produzir um livro novo que, obviamente, pode ser lido comparativamente com as edições francesas, mas que também pode ser compreendido como obra literária portuguesa e/ou brasileira.
(...)
O sucesso de vendas das diferentes edições terá estado na origem da perseguição a que foram sujeitas. Em França, por exemplo, logo após a publicação, foram condenados à prisão e ao exílio supostos autores, ilustradores, editores, livreiros e até leitores, incluindo funcionários de Luís XV e padres carmelitas, o que não impediu que o romance continuasse a circular, embora fosse um dos livros mais apreendidos à época.
Em Portugal, o livro foi denunciado à Inquisição em 1810, o que colocou, sem grande sucesso, “a polícia e os organismos de censura no encalço da obra”. No Brasil, a censura no século XIX, conforme El Far, era mais uma questão moral do que legal, sem grandes consequências para a circulação da obra. No século XX, no entanto, conforme noticiado pela Gazeta de Notícias, em 13 de março de 1946, o alemão Valter Menzl foi preso e processado porque a sua livraria vendia livros obscenos, como afirmava o título da notícia “O alemão negociava com livros imorais”. Entre os livros apreendidos pela Delegacia de Costumes e Diversões, através do delegado Carlos Toledo, estavam “Memórias do Frei Saturnino”, “História da Prostituição”, “Gula da Vida Íntima”, “Sereias de Copacabana”, “Almas Desnudas” e “Como Conquistei Vocês”.
Apesar das perseguições e da grande dificuldade para se encontrar o livro atualmente, tanto no Brasil como em Portugal, dificuldade que esta nova edição da INDEX permitirá resolver, os acervos particulares, assim como as Coleções Inferno das bibliotecas públicas, garantiram a sobrevivência de alguns, poucos, exemplares. De entre os acervos particulares, cabe destacar o de Frei João, que, no longínquo ano de 1883, guardava publicações pornográficas no convento de Santo António, com o único fim de as preservar devido à sua importância histórica. Ainda que incompreendido e chamado de devasso, torpe e crápula, o bravo Frei João protegeu obras como Os Serões do Convento, A Martinhada e Frei Saturnino, fazendo desses livros, segundo as más línguas, as suas obras de cabeceira e a sua bíblia.
- Helder Thiago Maia, Mário Lugarinho, João Máximo e Fernando Curopos
(...)
Saturnino, porteiro dos frades bentos, de 1842, que poderá ler a seguir com atualização e revisão ortográfica, é a primeira “versão” impressa em língua portuguesa de Histoire de Dom B... portier des Chartreux, sendo que, como outras do género, poderá ter circulado antes em versão manuscrita o que, aliás, poderia dilucidar o facto de o texto português apresentar alguns cortes e de certas cenas ficarem reduzidas ao miolo narrativo. Lembremos, à guisa de exemplo, que o outro grande sucesso da literatura libertina francesa coeva, Thérèse philosophe (Jean-Baptiste Boyer d’Argens, 1748), circulou em versão manuscrita durante muitos anos, antes de ser impressa, no primeiro quartel de Oitocentos. No entanto, entendemos que esta edição não é simplesmente uma tradução ou uma cópia do original francês; pelo contrário, as alterações, omissões e acréscimos efetuados a Histoire de Dom B…, portier des chartreux, assim como as novas gravuras produzidas para a edição, parecem produzir um livro novo que, obviamente, pode ser lido comparativamente com as edições francesas, mas que também pode ser compreendido como obra literária portuguesa e/ou brasileira.
(...)
O sucesso de vendas das diferentes edições terá estado na origem da perseguição a que foram sujeitas. Em França, por exemplo, logo após a publicação, foram condenados à prisão e ao exílio supostos autores, ilustradores, editores, livreiros e até leitores, incluindo funcionários de Luís XV e padres carmelitas, o que não impediu que o romance continuasse a circular, embora fosse um dos livros mais apreendidos à época.
Em Portugal, o livro foi denunciado à Inquisição em 1810, o que colocou, sem grande sucesso, “a polícia e os organismos de censura no encalço da obra”. No Brasil, a censura no século XIX, conforme El Far, era mais uma questão moral do que legal, sem grandes consequências para a circulação da obra. No século XX, no entanto, conforme noticiado pela Gazeta de Notícias, em 13 de março de 1946, o alemão Valter Menzl foi preso e processado porque a sua livraria vendia livros obscenos, como afirmava o título da notícia “O alemão negociava com livros imorais”. Entre os livros apreendidos pela Delegacia de Costumes e Diversões, através do delegado Carlos Toledo, estavam “Memórias do Frei Saturnino”, “História da Prostituição”, “Gula da Vida Íntima”, “Sereias de Copacabana”, “Almas Desnudas” e “Como Conquistei Vocês”.
Apesar das perseguições e da grande dificuldade para se encontrar o livro atualmente, tanto no Brasil como em Portugal, dificuldade que esta nova edição da INDEX permitirá resolver, os acervos particulares, assim como as Coleções Inferno das bibliotecas públicas, garantiram a sobrevivência de alguns, poucos, exemplares. De entre os acervos particulares, cabe destacar o de Frei João, que, no longínquo ano de 1883, guardava publicações pornográficas no convento de Santo António, com o único fim de as preservar devido à sua importância histórica. Ainda que incompreendido e chamado de devasso, torpe e crápula, o bravo Frei João protegeu obras como Os Serões do Convento, A Martinhada e Frei Saturnino, fazendo desses livros, segundo as más línguas, as suas obras de cabeceira e a sua bíblia.
- Helder Thiago Maia, Mário Lugarinho, João Máximo e Fernando Curopos
EXCERTO
Segunda Parte
CAPITULO II. Um dia em que eu estava ocupado com o forte da minha obra, em um lugar solitário, no qual eu não julgava achar quem embaraçasse os meus desejos, eu me dulcificava com esta voluptuosa indolência que permite a solidão. Um patife de um noviço me observava e, para maior desgraça minha, era do número dos meus contrários no estudo de Teologia, onde, apesar da razão, eu fazia uns progressos admiráveis. A vista inesperada deste estorvador me fez cair os braços de surpresa e fiquei, nesse estado, exposto à malignidade dos seus olhos. Julguei-me perdido, pensei que ele ia publicar minha aventura e a maneira com que ele me falou me persuadiu mais. – Como é possível, padre Saturnino, que vós, o modelo de convento, a águia da Teologia, tenhais... – Acabemos estes elogios irónicos, interrompi eu precipitadamente, percebo o que quereis dizer. Vistes o que eu estava fazendo e quereis publicá-lo por todo o convento. Ide embora, que eu vos espero no mesmo exercício, e continuei a fazer a mim, ainda com muito mais gosto. – Não, padre Saturnino, diz ele, com o mesmo sangue-frio, o que eu quero dizer-vos é para vosso benefício. Para que estais a fazer a vós mesmo como um insensato? Não há bastante quantidade de noviços bonitos em nosso convento? – Certamente vós julgais-vos desse número, lhe respondi eu. Ora, pois, deixai-me, que vossos discursos principiam a impacientar-me, ausentai-vos senão... |
De repente, ele soltou uma grande risada e, estendendo-me a mão, me disse: – Toca, amigo, de hoje em diante deixaremos de ser opostos, eu não te julgava um tão bon vivant e lastimo ver-te reduzido à dura necessidade de fazeres a ti mesmo. Pelo que vejo, és digno de melhor sorte. Há muito que te nutres deste guisado insonso e eu quero fazer-te provar outro muito mais saboroso. Este discurso me aquietou, sua franqueza excitou a minha e lhe apertei a mão. – Vamos, diz ele, palavra de honra, à meia-noite procurar-vos-ei na vossa cela, acreditai-me, recolhei vossa pica, não lhe abrandeis o tesão, que hoje vos há de ser tão necessário. Nada mais vos digo e ver-nos-emos à hora ajustada. Meu espanto foi extremo, depois da ausência do padre. Que será, dizia eu, este guisado saboroso que ele me quer fazer provar. Se é a oferta do noviço, pode guardá-la para si, que eu a detesto. Entregue a estas reflexões, entrei na minha cela, aonde me foi encontrar, à hora ajustada, o padre Benedito, era esse o seu nome. – Vamos, me diz ele. – Aonde, pergunto eu! – À igreja, responde ele. – Homem, estás doido, tens vontade de ir rogar a Deus a estas horas? Dispensai-me, não posso ser vosso esta noite. – Vinde, continua ele, acompanhai-me atrás dos órgãos e lá acharás o que te prometi. |