Clássicos de Literatura Gay
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RESSURREIÇÃOmário de Sá-Carneiro“Sim, Inácio de Gouveia em verdade não tinha razões para se queixar da existência. (…) Não haveria mãos enastradas nem lábios para morder, nem afetos ou amores – uma multidão de insignificâncias violetas, risonhas, carinhosas. Mas, a compensá-las, havia grandes maços de jornais, os volumes sagrados da sua biblioteca, e, sobretudo, as suas obras – ah! as suas obras”
“Uma noite, casualmente, [Inácio] encontrara-se num pequeno teatro vermelho para Montmartre, bocejando o seu tédio. (…) entre as intérpretes da revista idiota, os seus olhos fixaram-se numa dançarina meia nua – esplêndida, duma beleza enclavinhada: corpo agreste, musculoso, seios oscilantes, pequenos e esguios” e Inácio apaixonou-se. Também “Étienne Dalembert, incerto comediógrafo e jovem ator mais incerto que [Inácio] mal conhecia”, se deixa fascinar pela mesma bailarina. E é este sentimento comum, que os deveria afastar como rivais, que estranhamente os une, porque Étienne, “pelo menos, fora sensível ao que ele próprio sentira…” |
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EXCERTO
«Então… então… a verdade – pensou logo na manhã seguinte, recordando as palavras da véspera – era essa, irremediavelmente era essa…» Embalde procurara esquecer tudo, não atentar na evolução das coisas pequeninas… Pouco a pouco elas o tinham arrastado para o fim – ao amor, pelo menos ao desejo torturado…
E, em plena consciência vendo a realidade pela vez primeira – um doce enternecimento, mais do que nunca impregnante, se pôs a dimaná-lo: uma saudade azul celeste, tão esguia… tão esguia… Só agora, em nitidez perfeita, começava estranhamente a sentir, por evocação, todos os estados de alma que se tinham sucedido nele após a historieta. Ai, o episódio não lhe acontecera quando lhe falava… quando a ia esperar à porta do teatro… quando a rapariguinha lhe apertava os dedos… Não; ele chegara mais tarde – chegara só depois de ela ter passado. Apenas hoje a sentia, apenas hoje a evocava com pesar… Triste amor… triste amor… Mal a conhecera, e no entanto como lhe fizera bem… Ampliara-a… ampliara-a… Paulette agora vivia no seu mundo interior. E, muito longe, nas ruas duma capital perdida ao sul, num país de aventura – alguém sagrado murmurava em carícias o seu nome débil, tão parisiense… esfumava em horizontes distantes, sobre cúpulas de epopeia, o seu perfil inútil – elançado e flexível… Referida à sua vida, à vida do Artista – assim ela estilizava-se perpetuamente a áureo. Fora até bem melhor nunca a ter beijado. Esbatida – a mágoa volvera-se translúcida, capitosa de frágil, mais sensível, mais vibrátil em delicadeza. Depois, recomeçou lembrando, em dúvidas, como a atrizinha se lhe escapara… e ei-lo de novo a construir as razões psicológicas da fuga… Arquitetava-as agora iludindo-se voluntariamente, aproveitando apenas os indícios que convinham à interpretação que escolhera. E ao mesmo tempo, concentrando-se em espírito, como que procurava |
transmitir a sua vontade hipnótica ao passado – isto é: fazer com que as coisas, embora na realidade não tivessem sucedido como ele as dispusera – a partir desse instante começassem efetivamente a ter acontecido como ele resolvera…
Nos dias seguintes o seu estado de alma não se modificou. Entanto a sua nostalgia não lhe era de forma alguma um sofrimento estéril. Pois no curso das suas recordações melancólicas, das suas ânsias bruxuleantes – suscitavam-se-lhe imprevistamente maravilhosas ideias literárias… Também lhe não fizera mal Paulette, fugindo-lhe: ele hoje aprendera a sofrer por uma sombra, – de subtil resgatando-se-lhe a mágoa esquiva a impulsionar o seu génio. Ah, como a personagem de certa novela admirável, do mesmo modo no seu espírito tudo se alterava diluído em literatura – todas as suas dores lhe traziam obras-primas… E assim, essa noite, vagueando solitário a percorrer a sua angústia, o seu espírito mais uma vez divergira a edificar uma história medonha: Seria um artista bizarro, destrambelhado e sublime – visionário religioso em que pouco a pouco a adoração mística por Cristo se transformasse numa paixão violenta – uma paixão sexual, tempestuosa, ilimitada… Procuraria fugir-lhe, primeiro em esforços de lucidez – depois, entre exorcismos, cilícios, abstenções amarelas… Até que essa paixão terrível, acabando de o perder, se lhe volveria numa tortura infernal – sem desejos já de a sufocar; agora só na rubra impossibilidade de a satisfazer carnalmente… Enfim, para iludir a sua chama, esse artista – um escultor – ergueria uma estátua de Cristo, gigantesca, admirável… Erguê-la-ia espasmo a espasmo de alma, em ânsias cinzentas, em despeitos roxos – numa loucura virgulada, trucidante… E, concluída a sua obra imortal, num último estertor de cio – infame, todo nu – lançar-se-ia sobre o bloco de mármore sagrado, esmagando em fúria contra ele, os seus lábios, o sexo ereto… morrendo sobre a estátua – ofegante, mutilado, execrável… |
Foto: Wikipédia, aqui.
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MÁRIO DE SÁ-CARNEIROMário de Sá-Carneiro (Lisboa, 19 de maio de 1890 – Paris, 26 de abril de 1916) foi um poeta, contista e ficcionista português, um dos grandes expoentes do modernismo em Portugal e um dos mais reputados membros da Geração d’Orpheu.
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