Clássicos de Literatura Gay
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FREDERICO PACIÊNCIA
Mário de Andrade
No conto Frederico Paciência, Juca, um dos personagens e narrador, relembra como conheceu e conviveu durante a adolescência com o seu grande e “único amigo” Frederico Paciência, um colega mais velho. A tensão sentimental e homoerótica entre os dois amigos é patente, mas Juca nega-se a admiti-lo perante o amigo, perante o leitor e perante si mesmo.
Mário de Andrade demorou dezoito anos a dar forma definitiva a este conto, escrevendo-o e reescrevendo-o entre 1924 e 1942, três anos antes da sua morte. O conto apenas seria publicado postumamente, em 1947, na coletânea Contos Novos. Peterson Oliveira considera que “a demora em encontrar uma versão definitiva para ‘Frederico Paciência’, o único conto homoerótico do autor, sugere que os conflitos vividos por Mário em relação ao próprio desejo estejam relacionados à demora em dar um ponto final para tal narrativa.” |
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EXCERTO
Frederico Paciência... Foi no ginásio... Éramos de idade parecida, ele pouco mais velho que eu, quatorze anos.
Frederico Paciência era aquela solaridade escandalosa. Trazia nos olhos grandes bem pretos, na boca larga, na musculatura quadrada da peitaria, em principal nas mãos enormes, uma franqueza, uma saúde, uma ausência rija de segundas intenções. E aquela cabelaça pesada, quase azul, numa desordem crespa. Filho de portugês e de carioca. Não era beleza, era vitória. Ficava impossível a gente não querer bem ele, não concordar com o que ele falava. Senti logo uma simpatia deslumbrada por Frederico Paciência, me aproximei franco dele, imaginando que era apenas por simpatia. Mas se ligo a insistência com que ficava junto dele a outros atos espontâneos que sempre tive até chegar na força do homem, acho que se tratava dessa espécie de saudade do bem, de aspiração ao nobre, ao correto, que sempre fez com que eu me adornasse de bom pelas pessoas com quem vivo. Admirava lealmente a perfeição moral e física de Frederico Paciência e com muita sinceridade o invejei. Ora, em mim sucede que a inveja não consegue se resolver em ódio, nem mesmo em animosidade: produz mas uma competência divertida, esportiva, que me leva à imitação. Tive ânsias de imitar Frederico Paciência. Quis ser ele, ser dele, me confundir naquele esplendor, e ficámos amigos. (...) |
(...)
Me lembro muito bem que pouco depois, uns cinco dias, da minha declaração de amizade, Frederico Paciência foi me buscar depois da janta. Saímos. Principiava o costume daqueles passeios longos no silêncio arborizado dos bairros. Frederico Paciência falava nos seus ideais, queria ser médico. Adverti que teria que fazer os estudos no Rio e nos separaríamos. Em mim, fiz mas foi calcular depressa quantos anos faltavam para me livrar do meu amigo. Mas a ideia da separação o preocupou demais. Vinha com propostas, ir com ele, estudar medicina, ou ser pintor pois que eu já vivia desenhando a caricatura dos padres. Fiquei de pensar e, dialogando com as aspirações dele, pra não ficar atrás, meio que menti. Acabei mentindo duma vez. Veio aquele prazer de me transportar pra dentro do romance, e tudo foi se realizando num romance de bom senso discreto, pra que a mentira não transparecesse, e onde a coisa mais bonita era minha alma. Frederico Paciência então me olhava com os olhos quase húmidos, alargados, de êxtase generoso. Acreditava. Acreditou tudo. De resto, não acreditar seria inferioridade. E foi esse o maior bem que guardo de Frederico Paciência, porque uma parte enorme do que de bom e de útil tenho sido vem daquela alma que precisei me dar, pra que pudéssemos nos amar com franqueza. (...) |
MÁRIO DE ANDRADE
Mário
Raul Morais de Andrade (São Paulo, 9 de outubro de 1893 — São Paulo, 25 de
fevereiro de 1945) foi um poeta, romancista, musicólogo, historiador, crítico
de arte, fotógrafo, folclorista e ensaísta brasileiro. Foi um dos fundadores do
modernismo brasileiro, com a publicação do seu livro Pauliceia Desvairada, em 1922. Exerceu uma enorme influência sobre
a literatura brasileira moderna e, como estudioso e ensaísta (foi pioneiro no
campo da etnomusicologia), a sua influência transcendeu as fronteiras do
Brasil.
Algumas obras do autor: Há uma Gota de Sangue em Cada Poema (1917), Pauliceia Desvairada (1922), A Escrava que não é Isaura (1925), Ensaio sobre Música Brasileira (1928), • Macunaíma (1928), Contos Novos (1947, póstumo) e outras. |