Clássicos de Literatura Gay
14 e 15 |
Dissidências de Género e Sexualidade na Literatura Brasileira
uma antologia (1842-1930)
César Braga-Pinto e Helder Thiago Maia
César Braga-Pinto e Helder Thiago Maia reuniram nos dois abrangentes volumes desta antologia quase cem anos – “um longuíssimo século XIX” – de textos ilustrativos das dissidências de género e sexualidade da literatura brasileira, cruciais para se “compreender o lugar do Brasil na história do género, das sexualidades e das homossexualidades ocidentais.”
Segundo os organizadores, “mais importante do que criar um subcânone LGBT, a contribuição desta antologia será, ao contrário, de ampliação e desestabilização do cânone literário, reconstruindo o contexto em que este se consagrou. Esta antologia “contém inúmeras descobertas, seja de autores esquecidos, como Laurindo Rabelo, Ferreira Leal, Nestor Vitor, João Luso, Vinício da Veiga, Laura Villares e outros, seja de textos menos conhecidos de autores consagrados. Assim, mesmo autores como Machado de Assis, ao serem lidos em companhia de tantos inusitados escritores, poderão ser lidos sob um prisma até agora insuspeito, menos como uma exceção de seu tempo, mas em diálogo com seus contemporâneos e antecessores.” O primeiro volume, “Desejos”, debruça-se sobre o desejo homoerótico, incluindo o desejo dito “homossocial”, que se alarga num amplo contínuo do qual a misoginia, a homofobia e o “pânico homossexual” não estão excluídos. O segundo volume, “Performances”, reúne as representações não-normativas de género – homens efeminados, mulheres masculinas, assim como personagens que transitam entre géneros – e que raramente permitem afirmar algo sobre a (homo)sexualidade dos personagens. |
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Volume I: Desejos |
Volume II: Performances |
EXCERTOS
June e Jesse
(“Paixão lésbica”, Torturas do Desejo, 1922) Carlos Vasconcelos – Que teriam as mulheres de Babilónia para esse domínio imperioso sobre os homens? – perguntou Jessie, entre curiosa e maliciante.
– A mesma que as francesas de hoje exercem sobre todos os forasteiros, que dos confins do planeta acorrem à Cidade Luz das supremas delícias – retorquiu-lhe a amiga, com o conhecimento de quem sondara, havia pouco, os segredos dos “boulevards” e do sucesso da parisiense. – E porque nós, americanas, ignoramos tudo isso? – Porque os nossos homens têm, acima de tudo, o culto do negócio, ao invés da religião do amor, que foi apanágio do Oriente, e em lugar do belo, que é hoje o escopo do francês! Aposto que nunca idolatraste a beleza de Apolo, nem narcisaste a tua, que se me afigura tão perfeita quando a da mais bela filha de Vénus, e, no entanto, fazes jus e és digna de raras homenagens... E, assim dizendo, envolveu Jessie num aranhol de olhares concupiscentes, que a fizeram enlanguescer numa anestesia volutuosa e num vágado estranho, quando os dedos da amiga começaram, tilintantes e céleres, a entreabrir-lhe o corpete: – Exaltam a tua lindeza de adolescente umas linhas tão puras, uma compleição tão fresca, que te fariam ídolo favorito, em Paris, de toda uma chusma de artistas! Mesmo as mulheres belas ali te disputariam os beijos e abraços, na ânsia de monopolizarem a convivência contigo! June quebrantou os olhos num súbito desmaio libidinoso e, ao tremor das últimas palavras, deu à frase a expressão delatora do desejo insofrido. E ao notar a excitação ignota por elas alevantada na magnolesca estrutura da amiga, atirou-se-lhe sôfrega ao colo e em balbucios, cada vez mais aconchegadas, sorveu-lhe, em ósculos nervosos, os lábios deliciantes, bem mais rubros do que a polpa dos morangos da estação. Jessie como que se sentiu desarticular, na indolência dos abandonos, a esse inédito assalto andrógino, e toda a discrição frenética de June se deu, inopinada, escutando-lhe os suspiros e o acelerar violento da respiração. Despojada das grandes luvas de inverno, uma das mãos esguia de June travessurava-lhe pelo decote e barafustavam os dedos pelo seio olorante por onde, meses antes, passavam, comedidos, os lábios semifrios do esposo, na aprendizagem que a sedução da beleza impõe aos temperamentos menos deflagráveis... E em breves instantes, como uma Ceres tombada das regiões planetárias de Vénus, faminta, empenhava-se na colheita dos deliciosos pomos a boca tremente da americanita, estertorante e rugidora como uma felina: sorvia, contorcente e espamodiante, os rubros botões que intumesciam, irresistíveis, naquele divino vale de encantamentos... [...] |
Fresca Teoria (Requerimento)
(em O Malho, 1904) Anónimo – Ante a cruel derrocada; Do Rocio* dos meus sonhos, A musa desocupada, Embora em versos tristonhos, Vai jogar uma cartada: É bem dura a colisão Que me tolhe a liberdade Desta ingrata profissão; E ao prefeito da cidade Requeiro indemnização!... [*] O largo do Rossio é atualmente a praça Tiradentes, no Rio de Janeiro, onde foi erguida, em 1892, uma estátua equestre de D. Pedro I [imagem], adornada, no seu pedestal, com quatro esculturas de indígenas. No século XIX, esta praça era o centro da vida mundana e de lazer da cidade. Aqui se situavam o Teatro São Pedro de Alcântara (atualmente Teatro João Caetano), o Teatro Variedades (demolido em 1940), a sala de café-concerto Maison Moderne (demolida em 1940) e o famoso restaurante Stadt Munchen, que funcionava pela madrugada dentro, servindo os clientes que saíam dos teatros. O largo do Rossio foi também um ponto importante de encontro de pessoas dissidentes de género e sexualidade no século XIX e início do século XX. Julga-se que a estátua foi colocada para afastar estas pessoas do local.
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Organização / Introdução |
César Braga-PintoCésar Braga-Pinto é doutor em literatura comparada pela Universidade da Califórnia, Berkeley, e professor de literatura brasileira e comparada na Northwestern University. É autor, entre outros, de A violência das letras: amizade e inimizade na literatura brasileira (1888-1940). (EdUERJ, 2018), além de dezenas de artigos sobre João do Rio, Raul Pompeia, Adolfo Caminha, Gilberto Freyre, Mário de Andrade, entre outros. Vive entre São Paulo e Chicago.
Helder Thiago MaiaHelder Thiago Maia é doutor em literatura comparada pela Universidade Federal Fluminense, e atualmente realiza estágio de pós-doutorado em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, na Universidade de São Paulo, com bolsa FAPESP 2018/19521-4. É autor de O devir darkroom e a literatura hispano-americana (2014) e Cine[mão]: espaços e subjetividades darkroom (2018). É editor da revista Periódicus (UFBA) e pesquisador do NuCuS (UFBA).
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