Clássicos de Literatura Gay
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SÁFICASAlfredo GallisO comendador Segismundo de Campos decide contratar uma precetora britânica para cuidar da educação da sua filha Georgina, após a morte da sua esposa. Miss Katie Waterson chega no dia 4 de agosto, "um dia perfeito e terrivelmente canicular" e logo se afeiçoa por Manuela, a irmã de Georgina. Quando Arnaldo, o oficial da Marinha que estava noivo de Georgina, é enviado para fazer o seu tirocínio a segundo-tenente numa comissão de serviço em África, Katie aproveita a oportunidade para se insinuar junto de uma Manuela emocionalmente frágil, seduzindo-a. Sultão, o bom e velho cão da família, continua a manifestar a sua antipatia por Katie, rosnando sempre à sua passagem e Georgina começa também a desconfiar que algo se passa entre as duas mulheres.
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EXCERTO
Uma noite, poucos dias passados após estas confidências, desencadeara-se uma dessas terríveis trovoadas de outono que os marítimos temem tanto como as da primavera. Pouco antes da meia-noite começou a relampejar e a atmosfera a tornar-se pesada e quente, como se sobre ela pesasse a porta de um gigantesco forno incandescente. O mar estava escuro como breu, e no céu carregado de pesadas nuvens negras, não luzia nem uma estrela. Sentiu-se ao longe o ribombar de um trovão, e pouco depois as descargas elétricas começavam a fuzilar em todas as direções. Fosforescências azuladas, cor-de-rosa e violeta, iluminavam tragicamente todo o enorme espaço. Começou a soprar um vento rijo, e a tormenta desencadeou-se em toda a sua tremenda magnificência acompanhada de uma grossa bátega de água. Parecia que se estava travando nos ares uma renhida batalha, na qual à artilharia de grosso calibre cabia o papel principal.
Muito assustada e nervosa, Manuela agarrara-se a Katie exclamando:
– Tenho medo, Katie, tenho medo; não te vás embora, deita-te comigo.
Fuzilou um novo relâmpago mais vívido do que os outros, e à sua deslumbrante claridade o rosto de Katie apareceu radioso pela certeza da vitória.
Apertou Manuela nos braços e beijando-a disse-lhe:
– Sim, minha querida, não te deixarei, está descansada.
E prudentemente deu volta à chave da porta.
Muito assustada e nervosa, Manuela agarrara-se a Katie exclamando:
– Tenho medo, Katie, tenho medo; não te vás embora, deita-te comigo.
Fuzilou um novo relâmpago mais vívido do que os outros, e à sua deslumbrante claridade o rosto de Katie apareceu radioso pela certeza da vitória.
Apertou Manuela nos braços e beijando-a disse-lhe:
– Sim, minha querida, não te deixarei, está descansada.
E prudentemente deu volta à chave da porta.
CRÍTICA
"Se existe um período na cultura e literatura portuguesas em que, no que respeita ao lesbianismo, se pode afirmar que a visibilidade excede a ocultação, esse período corresponde claramente às primeiras duas décadas e meia do século XX; aproximadamente, poderemos dizer, desde a publicação do romance "Sáficas", de Alfredo Gallis, em 1902, ao desaparecimento decisivo de Judith Teixeira da cena literária portuguesa em 1927. Tal como nos outros romances publicados na coleção “Tuberculose Social” (aparentemente inspirada na “Patologia Social” de Abel Botelho), Gallis quis demonstrar que a ameaça da corrupção lésbica está por toda a parte: não apenas entre as suspeitas habituais—“essas miss e mademoiselles, inglesas, francesas e alemãs, que à beira dos trinta anos aportaram às lusas praias, e se encaixaram como preceptoras e educadoras de filhas famílias”—mas também entre as mulheres nadas e criadas em Portugal, tal com a jovem e rica viúva Octávia que compete com êxito pelo afeto da sua prima Manuela com a percetora irlandesa Katie. Apesar de Maria Helena Santana considerar que os romances da coleção “Tuberculose Social” de Gallis “conduz[em] as personagens ao habitual desfecho catastrófico”, tal não acontece em "Sáficas", que termina com Octávia e Manuela viajando alegremente pela Europa e com Katie, derrotada e zangada, mas apesar disso, muito cheia de vida e energia, a residir em Lisboa, presumivelmente com outra jovem aluna ao seu cuidado."
- Anna M. Klobucka, em Summoning Portugal’s Apparitional Lesbians: A To-Do Memo
- Anna M. Klobucka, em Summoning Portugal’s Apparitional Lesbians: A To-Do Memo
Foto: Biblioteca de Aljezur, aqui.
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ALFREDO GALLISJoaquim Alfredo Gallis (Lisboa, 1859 — Lisboa, 1910), mais conhecido por Alfredo Gallis, foi um jornalista e romancista, muito afamado nos anos finais do século XIX, que exerceu o cargo de escrivão da Corporação dos Pilotos da Barra e o de administrador do concelho do Barreiro (1901-1905). Como romancista conquistou grande popularidade, tendo escrito cerca de três dezenas de romances, alguns dos quais têm títulos sugestivos da sensualidade que os impregna, como Mulheres Perdidas, A Amante de Jesus ou O Marido Virgem. É autor dos dois volumes intitulados Um Reinado Trágico, apensos à História de Portugal, de Pinheiro Chagas, referentes ao reinado do rei D. Carlos I de Portugal.
Algumas obras do autor: Mulheres Perdidas, Sáficas, Mulheres Honestas (da série Tuberculose Social, 1901-04), A Amante de Jesus (1893), O Marido Virgem (1900), As Mártires da Virgindade (c. 1900), Devassidão de Pompeia (1909), O Abortador (1909), Um Reinado Trágico (1908-09), e outras. |