2.ª edição
com Introdução por Anna M. Klobucka Clássicos de Literatura Gay
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NOVA SAFOVisconde de Vila-MouraMaria Peregrina, uma minhota, herdeira rica, parte para estudar em Londres, onde descobre o que é amar e ser amada. Às limitações que lhe são impostas pela sociedade e pela moral, contrapõe a protagonista a sua filosofia de independência e determinação que “ressalta, clara, dos meus versos – moldura própria de uma ciência nova que elegeu princípios grandes, como sejam, – a bondade, a sensualidade, o autodeterminismo (a fatalidade do temperamento) e a liberdade da alma.”
Sobre Nova Safo, Anna M. Klobucka escreve que é “a primeira e, de longe, a mais ambiciosa obra literária de Vila-Moura (...) uma obra literária quase esquecida, considerada como o único romance decadente da literatura portuguesa (…) que merece ser resgatado do esquecimento por uma grande variedade de razões, não sendo uma das menores a figura inédita (e única, mesmo no século seguinte da literatura lusófona) da sua protagonista, uma lésbica intelectualmente e sexualmente assertiva e uma poetisa genial.” |
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EXCERTO DA INTRODUÇÃO
O romance Nova Safo, do Visconde de Vila-Moura, publicado em 1912, continua a ser o menos conhecido e o mais subestimado de entre as principais obras em prosa do modernismo português. Adiando para uma oportunidade futura uma discussão abrangente da sua marginalização no cânone literário, dedico-me aqui principalmente a explorar a complexa relação do romance com a poética e a política da sexualidade dissidente na intersecção das preocupações estéticas e ideológicas decadentistas e modernistas. Nova Safo não foi o primeiro romance português a tematizar centralmente a homossexualidade ‒ foi precedido por O Barão de Lavos (1891), de Abel Botelho, e também por Sáficas(1902) e O Sr. Ganimedes (1906), de Alfredo Gallis ‒ mas podemos considerá-lo como a exploração inaugural, nesta forma literária, de estruturas epistémicas, energias afetivas e horizontes criativos de um universo queer singularmente diversificado e inclusivo.
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Embora O Barão de Lavos possa ser lido como um texto cultural que excede as limitações da sua fórmula naturalista e orientação violentamente homofóbica, inscrevendo-se portanto, malgré lui, na genealogia nacional do reconhecimento e emancipação queer, a intencionalidade diametralmente oposta e energeticamente homofílica de Nova Safo modula o conjunto expressivo das forças autorais e narrativas combinadas do romance para produzir uma obra que, apesar de todas as suas notas dissonantes, é nada menos do que um hino simultaneamente triste e aspiracional à possibilidade queer.
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EXCERTO
Encontrei-a indolente, distraída, em viagem pelo Minho.
Estou a vê-la! – mulher de trinta anos, de fartos cabelos negros, olhar enevoado, sombrio, sobrancelhas luzentes, lábios finos, mostrando a espaço os dentes brancos, rosto moreno, talhado em linhas puras, modelo de bronze precioso de casa antiga, com ademanes de adolescente e artista. Acompanhava-a uma estrangeira mais nova, de cabelos e olhos castanhos, muito branca, boca pequena, de uma beleza vulgar, que abria em riso ingénuo, ar aventureiro de quem segue por um mundo de acaso, ao capricho doutra, da companheira, que a envolvia, às vezes, num largo olhar, complacente e tenebroso. Percebi entre as duas certa intimidade sensual, a que a segunda parecia dar-se passivamente, mas alegre, por comprazer, numa generosidade estulta de péssima lassidão. Iam quase à vontade na carruagem, indiferentes à observação estranha, longe dos costumes do mundo em que viviam, trocando olhares perversos, de uma sensualidade doentia, ali, à face de desconhecidos, que só excecionalmente podiam aceitar, com benevolência, a vida esquisita que denunciavam. Maria Peregrina pareceu-me uma esgotada – uma figura confusa, a contas com desequilíbrios íntimos, que lhe refletiam lassidão e exotismo. Eu sentara-me em frente da mais nova – a estrangeira de olhos cor de burel, muito apertada num costume de viagem, exageradamente cingido, de jeito a denunciar-lhe as formas regulares, irrepreensíveis. |
Quando entrei, tinha ela sobre o lugar que eu devia ocupar uma caixa de couro negro, a que prendiam duas correias, unidas por uma fivela. Era a caixa de um binóculo de tartaruga com lavrados de oiro, que Peregrina tinha na mão.
À minha chegada, a estrangeira levantou a caixa. E, como não visse melhor lugar, lançou-a ao ombro esquerdo, com a correia. Maria Peregrina interveio: – deixa ver, Violet! E, mexendo na correia, – apertaste a fivela ao contrário, vou compô-la. A inglesa inclinou-se para ela. Olhou em volta, derramando uma luz suave e quedou a olhar, agradecida, para a companheira. Depois, desviou a atenção para as árvores, que faziam a escolta da linha férrea, a seguir para as pessoas da carruagem, que viu indiferente, como vira as árvores; disse a Peregrina palavras ingénuas de disfarce, acerca do caminho, e horas da jornada; e acabou por tamborilar, a medo, nos vidros da janela. Eu seguia, interessado, aquelas figuras, que me pareciam tão diferentes e que, no entretanto, se bem-queriam, mercê de uma razão de fatalidade, aquela fatalidade que lera nas relações sensuais das duas, ao entrar na carruagem. |
Foto: Wikipédia, aqui.
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VISCONDE DE VILA-MOURABento de Oliveira Cardoso e Castro Guedes de Carvalho Lobo (Baião, Grilo, 8 de Novembro de 1877 — Porto, 3 de Setembro de 1935), primeiro e único Visconde de Vila-Moura, formado em Direito, foi um político, intelectual e escritor decadentista, que, entre outras funções foi deputado às Cortes da Monarquia Constitucional Portuguesa. Correspondente de Fernando Pessoa, foi cronista da revista A Águia e autor de uma vasta e fecunda obra como escritor, novelista, contista, cronista e crítico literário. De entre as suas obras destaca-se Nova Safo (1912), pela coragem na abordagem dos temas do lesbianismo, necrofilia e homossexualidade masculina, que provocou grande escândalo à época.
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