Clássicos de Literatura Gay
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O Berloque VermelhoSilva Pinto
Em 1875, António José da Silva Pinto, o reputado crítico literário, ensaísta, dramaturgo e romancista, publicava uma coletânea de contos intitulada Contos Fantásticos, na qual incluiu um conto brevíssimo com o título discreto de “O Berloque Vermelho”.
Segundo António Fernando Cascais, com este conto, silva Pinto torna-se no primeiro autor português a descrever, embora sob a capa protetora do fantástico, imposta pelas circunstâncias da época, uma relação erótica e amorosa entre dois homens narrada na primeira pessoa. Na sua apresentação magistral a “O Berloque Vermelho”, António Fernando Cascais dá-nos uma panorâmica sobre a representação da homossexualidade na literatura portuguesa, enquadrando-a com a construção do conceito de homossexualidade, e concluindo que, com Silva Pinto, talvez tenha nascido o “armário literário português”. |
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EXCERTO DA INTRODUÇÃO
À época em que Silva Pinto escreve “O berloque vermelho”, não havia ainda notícia, entre nós, do termo “homossexual”, forjado pelo médico de origem húngara Karoly Maria Kertbeny (1824-1882) e originariamente referido numa sua carta de 1869 a Karl-Heinrich Ulrichs (1825-1895), que, pela sua parte, usava pelo menos desde os anos de 1864-1865 o termo “uranismo”, por si concebido.
Ambos sucedem à noção de “sentimento sexual contrário”, definida em 1870 pelo psiquiatra alemão Carl Westphal (1833-1890), e inicialmente registada entre nós por Basílio Freire em Os degenerados, de 1886. Westphal está na origem de uma prolongada caraterização da homossexualidade essencialmente como inversão sexual, e é esta última ideia que prevalecerá no contexto nacional a partir da obra pioneira com esse título publicada em 1896 pelo médico Adelino Silva [com reedição INDEX ebooks, aqui]. No estado atual da pesquisa, é com este autor que aparecem entre nós o termos “homosexual” e “homosexualidade”, alternando com uranismo, de resto largamente prevalecente sobre aqueles na terminologia em vigor na literatura médica e médico-forense portuguesa, que cita amplamente Westphal e Ulrichs. Em contrapartida, a bibliografia científica nacional ignora por completo o nome de Kertbeny, mesmo quando o uso de “homossexualidade” passa a suplantar todos os demais no início do século XX, consagrado sobretudo pela obra A vida sexual, de Egas Moniz, que, desde a sua publicação original em 1901, conhecerá dezanove edições revistas até 1933. Tudo aponta para que Silva Pinto nada disto soubesse e que “homossexualidade” lhe teria soado a um neologismo ininteligível, que não faria sentido nenhum a quem pela primeira vez o ouvisse e que ele próprio nunca empregou, não obstante o imenso interesse com que, cerca de uma dúzia de anos depois de “O berloque vermelho”, seguiria a scientia sexualis que então via nascer diante dos seus olhos. [...] Começámos por dizer que “O berloque vermelho” constituía a primeira expressão autodiegética da relação erótica e amorosa entre dois homens na literatura portuguesa. A apreciação mais imediata e vulgar que costuma vir à mente de muito boa gente cheia de louváveis intenções é que, com isto, a homossexualidade dá pela primeira vez um ar da sua graça fora do armário. A verdade é que é neste preciso momento que insuspeitadamente assistimos ao nascimento do armário literário português. |
Do ponto de vista psicossocial, o armário começa por ser a reação mais espontânea de autopreservação do indivíduo à descoberta da sua homossexualidade. Não contradizemos agora tudo quanto dissemos antes: não, ninguém se descobre homossexual de maneira simples, “natural” e pacífica; descobre, isso sim, com o nome, o que lhe vai acontecer a esse pretexto: ele foi forçado a uma identidade mortífera pela ação concertada do direito que penaliza, da medicina que patologiza, da religião que sempre condenou e da sociedade que estigmatiza, para todas sobre ele precipitarem a sua sanha persecutória. Ao contrário do que acontece com a tranquilizadora heterossexualidade à pessoa heterossexual, a categoria de homossexualidade desvenda logo à pessoa por ela capturada tudo o que lhe pode acontecer. Não se desliza suavemente para a límpida revelação de que se é homossexual, apanha-se um susto.
O armário faz parte de uma reação de autodefesa primária, de evitamento de um confronto desigual, de que não se pode sair vitorioso, e de resistência passiva, por necessidade de sobrevivência num meio hostil e, com inteira propriedade, homofóbico. A tanto não escapa a sociedade portuguesa, que nega sê-lo, como nega ser racista ou xenófoba, por contraste com outras que visível e ostensivamente o afirmam. Mas sem dúvida que a sociedade portuguesa é homofóbica muito à sua maneira de o ser, não tanto por convicção – o que decerto lhe permite negar-se – mas incomparavelmente mais por convenção, pela sua caraterística maleabilidade adaptativa, que faz com que cada homofóbico luso olhe à sua volta a perscrutar a reação circunstante antes de emitir tão-só a opinião consentânea e esperada que pressente que os outros querem ouvir. Daí a volubilidade social, o cataventismo mental português, que se desculpa com a sua própria insinceridade, a solicitar que não seja levado a sério tudo quanto possa precipitar um conflito, e se arrepende a posteriori de ter dito, temeroso das consequências imprevistas. \ [...] -- António Fernando Cascais. Professor universitário. Organizou os livros: O vírus-cinema: cinema queer e VIH/sida (Lisboa, 2018), Hospital Miguel Bombarda 1968 – Fotografias de José Fontes (Documenta, 2016), Queer Film and Culture (Lisboa, 2014), Olhares sobre a Cultura Visual da Medicina em Portugal (Unyleya, 2014), Indisciplinar a teoria (Fenda, 2004), A sida por um fio (Vega, 1997). |
Silva PintoAntónio José da Silva Pinto, mais conhecido por Silva Pinto (Lisboa, 14 de abril de 1848 — Lisboa, 4 de novembro de 1911), foi um crítico literário, ensaísta, dramaturgo e romancista português.
Amigo de Cesário Verde, foi também um dos principais defensores do realismo e do naturalismo. Colaborou na Revista de Arte e de Crítica (1878-1879), Ribaltas e Gambiarras (1881) e também na Brasil-Portugal (1899-1914). Após a morte de Cesário Verde, foi responsável pela compilação e publicação da sua obra em O Livro de Cesário Verde, publicado em abril de 1887. |