Clássicos de Literatura Gay
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Mulheres PerdidasAlfredo Gallis
A linda e inteligente Horácia, o fruto de uma aventura amorosa de um fidalgo de província com uma bela camponesa, é desde pequena educada como uma princesa pela mãe, em Alijó. Quando anos mais tarde a mãe morre com uma pneumonia e o pequeno pecúlio que guardara para sobrevivência da filha desaparece, roubado, Horácia não tem outro remédio senão rumar a Lisboa, a convite da sua amiga de infância, Ana dos Reis Torgo. O que Horácia não desconfia é que as intenções da amiga, uma lésbica e dona de bordel, estão longe de ser honestas e fraternais, e que a sua vida na capital será tudo menos tranquila e feliz.
Alfredo Gallis foi um dos autores mais prolíficos dos romances sobre “patologias sociais”, um género literário que surgiu em finais do século XIX para satisfazer a curiosidade popular despertada pelas novas teorias científicas sobre sexualidade. Nestes romances, os autores, mascarando ambições comerciais, assumem objetivos pedagógicos, alertando pais, esposos e amantes, e a sociedade em geral, para certos “males sociais”, tais como a homossexualidade, a prostituição, o adultério e o safismo, entre outros, de que padecem os seus personagens e que estariam a contribuir para a degradação social e o enfraquecimento moral do país. Em Mulheres Perdidas, publicado em 1902 como o 3.º volume da série Tuberculose Social, Alfredo Gallis debruça-se sobre a prostituição feminina e o lesbianismo. No proémio do livro, o autor faz um extenso enquadramento histórico, social e religioso do “problema” da prostituição, concluindo: “Este livro destina-se pois a traçar um detalhe do grande e miserando quadro da prostituição moderna em todos os seus primórdios e consequências, quadro que neste século é a mais suprema das afrontas que ofendem e empanam o brilho de todas as sociedades cultas que blasonam de possuírem uma civilização, aliás hipotética, pois que ainda conservam essa vergonha moral que todos os grandes movimentos sociais que apontei neste proémio não conseguiram nem cuidaram de extinguir. Enquanto a mulher vender o seu corpo ao primeiro que chega ao talho onde essa venda se realiza, ou na via pública o oferecer ao transeunte que passa, a civilização não terá jamais atingido o seu justo nível moral, onde rigorosamente deve chegar para honra e lustro de todos os povos cultos...” Ao contrário do fim degradante e miserável a que é condenado o protagonista no famoso romance "O Barão de Lavos", de Abel Botelho, nem a protagonista de "Mulheres Perdidas" nem a sua amiga lésbica sofrem qualquer desfecho catastrófico, o que é notável na literatura da época. |
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EXCERTO
PARTE I.
CAPITULO I. A lua vinha arrastando o seu disco de prata sob a profundez do céu constelado, de uma imaculada pureza límpida, e ao longe, lá muito ao longe, sentia‑se o latir dos cães guardadores dos casais, enquanto as últimas luzes da casaria do lugar se iam apagando umas após outras, à proporção que os seus habitantes se recolhiam aos leitos. Somente a fumarenta candeia do Serafim Trigoso se conservava ainda acesa, derramando o seu baço clarão avermelhado nos rostos rudes e grosseiros dos bebedores retardatários. Preso do umbral da velha porta de pinho, de fechadura ferrugenta e tosca, balouçava‑se ao vento o tradicional ramo de louro, ressequido pelo sol e tostado pela poeira. Um grilo despedia‑se do verão, fazendo ouvir na continuidade monótona da mesma nota, o silvo arrancado ao friccionamento das suas asas. E banhada pela claridade do luar, a alta montanha, junto de cujas faldas a aldeia repousava no fundo do vale, aparecia nítida como um gigante proteico,[1] erguendo para o céu tranquilo a ramagem escura dos seus pinheiros e carvalhos colossais. À esquerda, na planície plantada de vinha e de milheirais, via‑se de espaço a espaço a fita estreita do riacho deslizar rápida como uma enorme serpente de prata polida. E à direita, o solar da morgada da Rabejana, a senhora fidalga, como lhe chamavam na terra, erguia‑se imponente e majestoso na sua enorme vastidão senhoril, apresentando aos reflexos do luar a sua frontaria ampla de uma brancura imaculada, e o largo portão de carvalho chapeado, sobre o qual se cravava um velho brasão de armas que só por si falava mais alto que todos os pergaminhos genealógicos dos Rabejanas. O relógio da ermida, presente do falecido morgado, bateu as onze horas com um som cavo e pausado, que se foi diluindo no espaço, até morrer sufocado entre o frondoso arvoredo da montanha. Então, abriu‑se uma pequena portinha pintada de verde, que existia na ala direita do palácio, e um vulto de homem, de alta estatura, embrulhado num capote escuro e com um largo chapéu derrubado para os olhos, saiu para a rua e parou um momento a examinar tudo quanto o rodeava. |
A lua continuava a avançar rapidamente em direção à montanha. Em breve o seu círculo luminoso deveria ocultar‑se por detrás da copa alterosa das árvores. O homem tomou a direção do olival que existia por detrás da casa, e a passo largo e seguro, atravessou‑o em toda a sua extensão. Cortou à estrada, que percorreu na distância de uns duzentos metros, e entrou no estreito carreiro que ficava à esquerda. Ao fim deste existia uma sebe. Sem hesitar saltou‑a, e penetrou em terreno cultivado de propriedade particular. Chegado ali parou. Decerto que esperava alguém. Essa pessoa apareceu dentro em pouco. Era uma mulher de formas avantajadas, que se lhe dirigiu pressurosa. – Julgava que não viesse hoje, exclamou ela. – Porquê? – Porque o luar tem estado muito claro. – Para te abraçar e beijar, respondeu ele, apertando‑a nos braços, viria, ainda mesmo que o sol rompesse de repente. Ela sorriu‑lhe, deixando ver a fieira preciosa dos dentes alvíssimos emergindo de entre uns lábios frescos e carminados. – Sabes que parto amanhã? disse‑lhe ele, puxando‑a suavemente para si e sentando‑se numa pedra. –Já amanhã! respondeu ela com tristeza. Como eu sou desgraçada! E pelas faces correram‑lhe duas lágrimas. – Porquê, Maria? – Ora porque há de ser? o senhor doutor vai para Lisboa e com certeza que nunca mais se lembra de mim. – Pateta! Como não me hei de lembrar de ti, se de ti gosto tanto! – Sim, diz-me isso para me consolar, mas em partindo esquece‑se logo da Maria. Ele beijou‑a nos lábios com todo o ardor de uma mocidade pletórica de vida e de desejos, e premiu‑lhe os seios duros e opulentos de mulher saudável e forte que nunca tinha concebido. |
Detalhe de retrato de Alfredo Gallis, série Postais da 1.ª República (1910 - 1918), 1.ª série (n.º 1 a 18), Arquivo da Câmara Municipal de Almada. (fonte: Wikipédia, em domínio público)
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Alfredo GallisJoaquim Alfredo Gallis (1859—1910), mais conhecido por Alfredo Gallis, foi um jornalista e romancista, muito popular nos anos finais do século XIX, que exerceu o cargo de escrivão da Corporação dos Pilotos da Barra e de administrador do concelho do Barreiro (1901-1905). Como romancista conquistou grande popularidade, tendo escrito cerca de três dezenas de romances, alguns dos quais têm títulos sugestivos da sensualidade que os impregna, como Mulheres Perdidas, A Amante de Jesus ou O Marido Virgem. No âmbito da série Clássicos de Literatura Gay, a INDEX ebooks reeditou três romances do autor: O Sr. Ganimedes(1906), Sáficas (1902) e Mulheres Perdidas (1902).
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